O Palhaço e a Polícia

 


             O rapaz insistia em dizer às autoridades - enquanto lhe aplicavam a famosa “geral” -  que seu trabalho era ser palhaço. Cada vez que repetia o nome ingrato da sua profissão levava um tabefe. Eram tapas sortidos, vinham iguais aos bombons em caixas de chocolate. Tinha para todos os gostos. Bolachas, cascudos, pés d’ouvido, lapadas, bofetões, sopapos, até um “pedala Robinho”, nosso artista levou. Entendeu um pouco tarde que, para evitar a “massagem”, executada de maneira exemplar pelos policiais, não podia proferir a palavra “palhaço”, e o palhaço em questão, teria que mudar sua profissão.

            Nosso herói apanhou sob os apupos de uma distinta plateia de desocupados que se dividiam entre tomar as dores do “pobre palhaço” ou ficar do lado da autoridade devido aos desacatos do “palhaço abusado”. Enfim, uma palhaçada.

            Como podemos notar, uma única palavra pode causar polêmica semântica, intolerância interpretativa e contusões corporais. O caso do nosso “palhaço” mereceu tal distinção dos bravos agentes da força policial que até se esqueceram dos dois meliantes que eram o alvo inicial da peleja. Esses escafederam-se misteriosamente, como “mágicos”, para permanecer nas parábolas circenses.

            Ao final do ato, o pobre palhaço foi deixado na sarjeta, devidamente sovado e moído, não sem antes ouvir um sermão cheio dos erros de concordância, muito próprio de quem detém um pouco de poder.

            Levantou-se, bateu o pó da roupa, recolheu suas coisas e ouviu aplausos do seleto público que se aglom
erava para assistir a confusão. Fez todas essas coisas simples, inclusive apanhar, com tanta graça que as pessoas acreditaram que a sova fazia parte de uma encenação criada pelo artista.

              O palhaço, malandro que é, não perdeu a compostura. Agradeceu os aplausos e passou o chapéu. A surra rendeu, além dos hematomas, uns trocados muito bem-vindos. Podia ter sido mais lucrativo se as autoridades não estivessem voltando. O palhaço sabia que ganância demais podia lhe custar uma costela quebrada ou um olho roxo. Saiu de fininho em direção ao metrô mais próximo.

            Do centro até o bairro onde morava, na periferia da cidade, eram mais de duas horas de condução, em geral, lotada, não importava o horário. Fazia o caminho com resignação paciente, muita digna. Sabia que ao chegar, encontraria as duas coisas mais preciosas da sua vida. Vida essa que ele acreditava estar forrada de preciosidades. O palhaço era antes de tudo um forte.

            Não foi direto para sua casa, resolveu passar no pequeno mercado do bairro e comprar salsichas e pão para cachorro-quente. Quando saiu havia duas viaturas em frente ao estabelecimento. O palhaço tremeu. Qual a chance de tomar duas prensas da polícia no mesmo dia? A resposta aparecia clara como neon: Todas.

            Apesar da cara de culpado que ele fazia, mesmo sem querer, não aconteceu nada. Apenas o susto. Abriu um sorriso assim que dobrou a esquina e ficou fora dos olhos perscrutadores da lei. Voltou novamente os pensamentos para suas preciosidades.

            A primeira das preciosas ficou muito preocupada com os hematomas espalhados pelo rosto sorridente do palhaço. Só de vê-la todas as dores do seu corpo passavam. Só pensava em enlaçar sua cintura porque “todo tempo quanto houver pra mim é pouco pra dançar com meu benzinho numa sala de reboco”.

            Rapidamente explicou o que acontecera e, mesmo com imensa preocupação, a mulher não conseguia parar de rir do jeito como ele contava a história e o susto final ao comprar as salsichas coroou a aventura. Era um ótimo palhaço, tirava graça até da desgraça.

            Precisava tomar um banho antes de ver sua outra preciosa. A mais preciosa de todas as coisas preciosas do mundo.

            Entrou no quarto da filha nas pontinhas dos pés, fazendo suas palhaçadas, enquanto ela fingia dormir. Suas momices arrancaram rizinhos sufocados que se transformaram em gargalhadas quando ele pulou sobre a menina fazendo cócegas.

            Carinhos, boa noite e beijo na testa. Levantou-se pra sair achando que tinha cumprido seus deveres paternos. A filha, muito esperta, lembrou que não conseguia dormir sem ouvir uma música. Fazia parte de um trato há muito firmado. Um acordo que fizeram quando ela teve problemas com a escuridão. O medo tinha passado, mas o gosto pelas canções só aumentara desde então.

            O palhaço se acomodou na cama ao lado da filha e começou a cantar e interpretar “Ciranda da Bailarina” como só um palhaço consegue, até chegar no versinho:

“Todo mundo tem um irmão meio zarolho
Só a bailarina que não tem”

            A menina ficou séria e ele parou de cantar. Acariciou o rosto da filha e perguntou por que ela tinha ficado tão séria. O problema é que ela não tinha irmão, mesmo que fosse “zarolho”, não tinha importância, ia amar de qualquer jeito. O palhaço sorriu, explicou que ter filho era muita responsabilidade. Ela tinha muitos primos e amigos que poderia tratar como “irmãos”.  Não era a mesma coisa, disse ela se ajeitando no travesseiro já com o sono jogando areia nos seus olhos. Não demorou muito para entrar no reino dos sonhos.

            O palhaço beijou a bela adormecida e saiu de fininho. Duas palavras com P o alegravam muito: Pai e Palhaço. Devia existir a palavra “Pailhaço” para englobar tudo, lembrou-se da sova que levou dos policiais e imaginou que a grande maioria das pessoas não teriam o humor necessário para entender o novo vocábulo e desistiu da reforma ortográfica. Saiu do quarto e foi preparar as salsichas.

Comentários

  1. Opa Moa aqui... showsacional... texto conduzido de foram tragicomica do cotidiano de alguem por ai... parabens

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